O laço sanguíneo não é a única ponte que liga pais e filhos. A adoção é prova de que o afeto pode estruturar uma família — com os mesmos direitos e deveres. Em uma sociedade cada vez mais complexa, outros tipos de vínculos surgem e desafiam a Justiça, sobretudo nas discussões em torno da divisão de bens deixados em herança.
É o caso do parentesco socioafetivo. A advogada Silvana Schroeder, de São Paulo, explica que essa relação de filiação sem vínculo biológico precisa seguir algumas regras para ser concedida. “Esse tipo de parentesco é configurado pela presença constante de laços de cuidado, criação e pela manifestação pública de paternidade ou maternidade, formando uma relação familiar consolidada”, diz.
O assunto ganhou repercussão a partir do reconhecimento recente de filiação entre uma jovem e o maior ídolo do futebol mundial. Gemima Lemos MacMahon, 32, foi considerada filha socioafetiva de Edson Arantes do Nascimento, o Pelé.
O “Rei do Futebol”, com 3 vitórias em Copas do Mundo no currículo, morreu por complicações de um câncer de cólon, em 29 de dezembro de 2022. A discussão em torno da divisão dos bens deixados pelo ídolo do futebol é tema da quarta reportagem do Especial Herança, publicado nesta semana pelo InvestNews. Os casos de Mussum, Zagallo e Gal Costa já foram retratados na série.
Pelé é pai de 7 filhos naturais de diferentes relacionamentos. Do primeiro casamento, que durou de 1966 a 1978, com Rosemari de Reis, nasceram Kelly Cristina, Edinho e Jennifer. Do segundo matrimônio, de 1994 a 2008, com Assíria Seixas Lemos, foram a vez de Joshua e Celeste.
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Pelé teve mais 2 filhas de relações extraconjugais: Flávia Cristina e Sandra Regina — esta mesmo com exame de DNA provando ser filha biológica, nunca foi aceita por Pelé. Sandra Regina foi vereadora em Santos, terra natal do pai, e autora do livro “A Filha que o rei não quis”. Morreu em 2006, aos 42 anos, vítima de um câncer de mama.
O patrimônio deixado pelo ícone do futebol mundial, estimado em R$ 78 milhões, foi dividido entre a viúva, Márcia Aoki, os 6 filhos naturais que seguem vivos e a filha socioafetiva, Gemima. No caso de Sandra Regina, a herança vai para seus dois filhos, Octávio e Gabriel.
Gemima é filha de Assíria. Ainda criança, criou laços com o ídolo do futebol quando este era casado com sua mãe. Como o vínculo de filha socioafetiva só foi reconhecido após a morte do ex-jogador, Gemima ingressou com uma ação na Justiça para o reconhecimento de sua filiação, que contou com o apoio dos demais herdeiros. Com o status de herdeira, foi incluída no inventário de Pelé, que tramita na 2ª Vara de Família e Sucessões do Foro de Santos (SP).
Gemima passou a ter os mesmos direitos e privilégios dos filhos biológicos de Pelé. Mas o que diz a lei sobre o parentesco socioafetivo?
Direito protegido
Esse tipo de vínculo está protegido pela Constituição Federal de 1988, por meio do princípio da dignidade humana, listado no artigo 1º, inciso III. O ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) também respalda essa filiação ao priorizar o direito da criança a uma família.
O artigo 1.593, do Código Civil, é outro dispositivo que equipara os vínculos de parentesco biológico e socioafetivo. Esse entendimento ganhou força, segundo especialistas em direito de família consultados pelo Investnews, quando o STF analisou o conceito da multiparentalidade em 2016 e concedeu a possibilidade de uma pessoa ter mais de um pai ou mãe — tanto biológicos quanto socioafetivos.
Para Sueli de Souza Costa e Silva, líder do Núcleo Especial do Benício Advogados, a decisão do Supremo consolidou o entendimento de que um filho pode ter dois pais ou duas mães, com a convivência afetiva sendo o critério fundamental para o reconhecimento da filiação.
“Esse entendimento também abriu espaço para o reconhecimento de filhos socioafetivos como herdeiros legítimos, o que garantiu a eles os mesmos direitos dos filhos biológicos. O reconhecimento da multiparentalidade reforça a proteção à família, assegurando a igualdade de tratamento, o que evita discriminações”, diz a advogada.
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Como comprovar vínculo socioafetivo?
São inúmeras as maneiras de obter provas de filiação socioafetiva. As mais utilizadas, segundo especialistas em direito de família, são as seguintes:
- Provas Documentais
• Fotos e registros de convivência: Imagens que mostrem a relação de proximidade, como festas, passeios e momentos familiares;
• Cartas, e-mails ou mensagens: Trocas de comunicação que demonstrem carinho, cuidado e reconhecimento do vínculo;
• Registros escolares ou médicos: Indicações do responsável como “pai” ou “mãe” em documentos oficiais da criança;
• Nome em documentos formais: Nome da figura paterna ou materna socioafetiva como responsável em certidões, contratos ou cadastros. - Provas Testemunhais
• Depoimentos de amigos, parentes e vizinhos: Testemunhos de pessoas próximas que possam narrar fatos que confirmem a relação de paternidade ou maternidade socioafetiva;
• Relatos de professores e outros profissionais: Falas de profissionais que convivem com a criança, como professores ou cuidadores, podem ajudar a atestar o vínculo. - Atos de Reconhecimento
• Inscrição em plano de saúde ou seguro: O registro da criança como dependente da figura paterna ou materna;
• Atos de manutenção financeira: Provas de que há alguma contribuição regular para o sustento da criança, como pagamentos de escola, alimentação ou saúde;
• Reconhecimento formal: Declarações públicas ou oficiais em que a pessoa se apresenta como pai ou mãe da criança, como em redes sociais ou em conversas informais. - Provas de Convivência e Afetividade
• Relação contínua de cuidado e proteção: Presença diária ou frequente, participação ativa na educação, saúde e desenvolvimento da criança;
• Datas comemorativas: Participação em momentos importantes, como aniversários, Natal e formaturas. - Parecer Psicológico ou Social
• Estudo psicossocial: Relatórios elaborados por assistentes sociais ou psicólogos judiciais que investiguem e analisem a relação entre as partes;
• Perícia judicial: Em processos judiciais, o magistrado pode determinar uma análise especializada para confirmar o vínculo socioafetivo.
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Igualdade assegurada
O inventário, para o filho socioafetivo, segue os mesmos trâmites do aberto por um filho biológico, segundo determina a Justiça. Se o parentesco socioafetivo ainda não estiver reconhecido, é preciso ingressar com uma ação de reconhecimento de filiação socioafetiva post mortem, caso de Gemima, para assegurar o status como herdeiro necessário.
E ambos têm igualdade de condições no processo de sucessão patrimonial. “Caso haja testamento, assim como para os demais herdeiros necessários, será assegurado o direito à herança legítima do patrimônio da pessoa falecida, mesmo que o testamento beneficie terceiros”, salienta a advogada Laísa Santos, especializada em Direito de Família e Sucessões.
Para não restar dúvidas: herdeiros necessários são aqueles que têm direito legal a uma parte da herança deixada por uma pessoa falecida. No Código Civil, o artigo 1.815 estipula que estão neste grupo os descendentes (filhos e netos), os ascendentes (pais e avós) e os cônjuges.
Quem está em uma dessas posições tem o direito de receber, de forma equânime, a divisão obrigatória de 50% do patrimônio da herança, nomeada de legítima.
O cálculo da herança legítima é feito sobre o valor dos bens existentes no início do processo de sucessão, subtraindo do patrimônio as despesas realizadas com funeral e eventuais dívidas que o falecido tenha deixado.
Os outros 50% do patrimônio são listados como herança disponível. Nela, a destinação dos bens é livre e pode beneficiar qualquer pessoa.
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O vínculo socioafetivo pode ainda ser contestado por algum herdeiro. Neste caso, é necessário buscar o reconhecimento na Justiça, em paralelo ao inventário, diz a advogada Sueli de Souza Costa e Silva. “Uma vez reconhecido, o filho socioafetivo participa da partilha em condições de igualdade com os demais herdeiros legítimos”.
Para as especialistas consultadas, o testamento pode ser um instrumento de proteção dos direitos do filho socioafetivo, sobretudo, em situações onde o vínculo ainda não está formalizado. “A inclusão do filho socioafetivo no testamento evita disputas judiciais e assegura sua participação na herança”, enfatiza a advogada Silvana Schroeder.