‘Herancis’ de Mussum: quais os direitos de um filho reconhecido por DNA após a morte do pai?
“Não sou faixa preta cumpadi, sou preto inteiris, inteiris“. Basicamente todo brasileiro sabe quem disse esta e outras frases de efeito com as palavras terminadas em “is”.
Consagrado em diferentes áreas do entretenimento, Antônio Carlos Bernardes Gomes, mais conhecido como Mussum, morreu há 30 anos, por complicações de um transplante de coração, em 29 de julho de 1994. Ele tinha 53 anos.
Irreverente, sempre tem seu nome reaquecido nas redes sociais pelos esquetes de humor imortalizados em “Os Trapalhões”, programa em que fez história. A paixão pelo samba é outra marca do artista. Foi integrante do grupo musical “Os Originais do Samba” e um dos grandes nomes da Estação Primeira de Mangueira.
Mussum segue pop. Em 2023, teve sua vida retratada em “Mussum, o filmis”, que venceu o Kikito de melhor filme no Festival de Cinema de Gramado.
Nos últimos anos, o nome de Mussum também parou em outro lugar: na Justiça. Desavenças entre os filhos em torno da herança deixada pelo humorista explicam esta situação.
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Até 2019, Mussum tinha cinco filhos reconhecidos (Augusto César, Sandro, Paula Aparecida, Antonio Carlos Filho e Antônio Carlos Santana, o Mussunzinho), mas um sexto herdeiro provou ser descendente do artista após resultado positivo de DNA.
O dentista Igor Palhano disse, em diferentes entrevistas, que já sabia ser filho de Mussum, mas esperou seu padrasto falecer para fazer o exame que atestou a paternidade. A chegada de Igor criou uma demanda: ele quer receber valores oriundos dos direitos autorais de Mussum, como os irmãos.
Só que os demais herdeiros se negaram a assinar um documento que o reconhecia como filho biológico, situação que obrigou o dentista a ingressar com o pedido na Justiça. Paula Aparecida, uma das filhas de Mussum, afirmou publicamente que os bens deixados pelo pai — como imóveis e uma lancha — foram vendidos e partilhados há mais de 15 anos.
Até que o imbróglio jurídico seja resolvido, os bens dos herdeiros ficarão bloqueados. O caso de Igor não é isolado. Um novo herdeiro pode surgir em qualquer momento e causar mudanças significativas no processo de divisão de bens. O que fazer neste caso?
Especialistas consultados pelo InvestNews afirmam que Igor seguiu o trâmite recomendado: ingressou, primeiro, com uma ação de reconhecimento de paternidade post mortem (quando o pai já é falecido).
“É esta ação que é usada para o solicitante provar ser filho e, consequentemente, ter direito à herança. Esse procedimento visa confirmar a paternidade em relação a uma pessoa que já faleceu, por meio da realização de provas como DNA em parentes e oitiva de testemunhas, explica a advogada Roberta Capistrano, do Fabio Kadi Associados.
Capistrano também diz que a mesma ação concede ao solicitante, além da herança, o nome do pai em toda documentação pessoal. Mas é preciso esperar. “Somente após a obtenção de uma sentença favorável e o trânsito em julgado da decisão é que o solicitante terá o status de herdeiro e, consequentemente, passará a gozar dos direitos à herança”, afirma Laísa Santos, advogada especialista em Planejamento Patrimonial e Sucessório.
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Como ficam os bens?
Para o herdeiro reconhecido por exame de DNA após a morte dos pais, caso do filho de Mussum, é necessário cumprir algumas regras para ter direito ao espólio (patrimônio que será partilhado no inventário).
Especialistas em sucessão patrimonial explicam que, nessa situação, é preciso ingressar na Justiça com uma “Petição de Herança”, prevista no artigo 1.824 do Código Civil. “Caso o inventário e a partilha já tenham sido finalizados à época do reconhecimento de paternidade post mortem, o novo herdeiro poderá pedir a reabertura da partilha para assegurar sua parte dos bens”, diz a advogada Laísa Santos.
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A advogada Marina Dinamarco salienta que a petição precisa estar acompanhada de uma “Ação de Anulação de Partilha”. Esse documento pede a anulação do inventário feito na sua ausência. “E enseja uma nova divisão de bens computando, agora, a sua presença”, diz.
Atalho é saída
A depender do caso, a reabertura do processo de partilha pode gerar desgastes. No curso do processo, os demais herdeiros podem ter vendido bens inventariados, por exemplo. A eventual anulação do inventário, neste caso, afetaria as vendas e resultaria em novas demandas judiciais.
É por saber disso que muitos juízes têm usado um atalho: o recálculo proporcional da herança.
Funciona assim: o juiz calcula a cota hereditária devida ao “novo” herdeiro considerando o valor que lhe caberia com base na sentença que reconheceu a paternidade (ou a maternidade) post mortem. Esse percentual precisa ser o mesmo, caso o “novo” herdeiro tivesse sido incluído na partilha desde o início do processo.
Cada herdeiro é notificado a ressarcir, proporcionalmente, o valor equivalente à cota devida ao filho recém reconhecido. “Esse rateio ocorre de acordo com os bens e os direitos que cada um já recebeu, de modo que todos contribuam proporcionalmente para assegurar a parcela do novo herdeiro”, explica a advogada Laísa Santos.
Com o valor recalculado, o herdeiro reconhecido post mortem pode, então, receber a quantia devida diretamente dos demais, sem a necessidade de desmembramento ou transferência de bens específicos.
E como é calculado o valor dos bens? A Justiça tem uma regra: para os bens que ainda estão sob posse dos herdeiros, o valor a ser considerado é o atual, de mercado. Já para os que foram vendidos, além de atualização, há incidência de juros de 1% ao mês.
Mas, atenção: se os demais herdeiros tiverem gastado a herança, ou a maior parte, o novo herdeiro ficará no prejuízo, salientam os especialistas em direito de família e sucessão.
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Prazo: um ponto de atenção
A passagem do tempo é outro fator a ser analisado pelo novo herdeiro. Embora a ação de investigação de paternidade seja imprescritível, ou seja, pode ser solicitada em qualquer momento, a Petição de Herança tem um prazo para ser analisada: até 10 anos contados a partir do falecimento do genitor.
Lembrando que é a Petição de Herança a responsável por reconhecer o direito sucessório de um novo herdeiro e a restituição dos bens que lhe cabem.
Em maio deste ano, a Segunda Seção do STJ (Superior Tribunal de Justiça) definiu que o prazo para uma pessoa entrar na Justiça e pedir sua parte na herança começa a contar a partir da data da morte do suposto pai e não no dia em que foi concluído o processo de reconhecimento da filiação.
“O fundamento utilizado pelo STJ é para dar segurança jurídica e estabilizar as relações em um lapso temporal razoável”, explica a advogada Marina Dinamarco.
Com mais de vinte cinco anos entre a morte de Mussum e o reconhecimento da filiação de Igor via DNA, o dentista não terá direito ao seu quinhão hereditário, segundo a legislação vigente.
Já em relação aos direitos autorais do humorista, a Lei 9.610/98 (que trata sobre o tema), a própria Constituição Federal de 1988 e o Código Civil asseguram a continuidade dos direitos autorais de uma obra de arte após o falecimento de seu autor, permitindo aos herdeiros e detentores desses direitos o controle sobre seu uso. O artigo 41 da Lei de Direitos Autorais estipula, inclusive, que os direitos patrimoniais perdurarão por setenta anos após a morte do autor.
Mas ainda há um ponto de interrogação sobre se Igor Palhano terá sua parte nos direitos autorais de Mussum. “Os direitos autorais integram o direito à herança. Por esse motivo, a tendência é que se entenda que Igor também não teria direito, em virtude da prescrição [da Petição de Herança]”, aponta Marina Dinamarco.
“Contudo, como o julgamento [do STJ] sobre o assunto é recente, é necessário aguardar o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça a esse respeito”, finaliza a especialista.