São Paulo FC rejeita SAF e abre um novo caminho para o mercado financeiro no futebol
No começo de 2023, Marcio Carlomagno era só preocupação com as dívidas do seu time de coração. Executivo do São Paulo Futebol Clube, ele recebeu do presidente do time, Julio Casares, a tarefa de renegociar as obrigações que o Tricolor tinha com vários bancos, como Bradesco, Daycoval, Rendimento e Tricury. Só com os empréstimos bancários, o passivo financeiro estava na casa dos R$ 240 milhões.
E a solução veio da Faria Lima. Em vez de sentar com os bancos, ou cogitar uma SAF, o clube foi por um caminho mais sofisticado, e menos ortodoxo: montou um fundo de investimentos.
O São Paulo tinha pressa.
Dois terços da dívida venceriam em até 12 meses. O terço restante precisava ser pago em 18 meses. Além de curta, a dívida era cara. “A média era CDI + 9%, CDI + 10%. A gente chegou a pegar operação CDI + 11%”, disse Carlomagno ao InvestNews. Os empréstimos serviam a propósitos diversos, alguns bem típicos de times de futebol, como a compra de atletas. “Mas isso estava fazendo a gente patinar financeiramente”, reconhece.
Os primeiros planos para a reestruturação financeira do time do Morumbi envolveram frustradas tentativas de renegociar com os credores – “primeiro batemos nas portas dos bancos que, teoricamente, são nossos parceiros” –, o que incluiu até uma tentativa de sindicalizar as dívidas. Não deu em nada. Além das conversas com bancos, o São Paulo tinha procurado family offices e fundos de investimentos.
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A situação só foi para frente depois de meses de conversa com a gestora Outfield, especializada em negócios do mundo esportivo. A empresa tem experiência em operações envolvendo Sociedades Anônimas de Futebol (SAFs), mas o São Paulo não queria vender parte do patrimônio para um investidor, como fizeram outras equipes em dificuldades financeiras nos últimos anos – Cruzeiro, Botafogo e Vasco, para ficar nas mais conhecidas.
“Desenhamos uma série de formatos e procuramos a Galapagos Capital, [outra empresa do mercado financeiro] com quem temos uma parceria nos veículos de crédito”, conta Pedro Oliveira, sócio-fundador da Outfield. Juntas, as duas empresas botaram de pé um Fundo de Investimentos em Direitos Creditórios (FIDC) de proporções inéditas no futebol brasileiro.
O FIDC funciona como uma espécie de condomínio de investidores que emprestam dinheiro a um ou mais beneficiários – neste caso, só o São Paulo – e ficam com cotas. Esse empréstimo é garantido por recebíveis, que aqui incluem direitos de transmissão, patrocínios, contribuições dos sócios do SPFC, naming rights e até receitas advindas da venda de jogadores.
Com essa estrutura, o São Paulo está levantando R$ 240 milhões para zerar a dívida bancária. Na prática, está trocando uma dívida curta e cara por uma mais barata e longa, o que deve liberar orçamento para outras áreas do clube. Lembra daquele CDI+11%? A taxa do FIDC deve ficar bem abaixo disso, graças ao risco diminuto da estrutura.
O que há de novo?
Os FIDCs e o futebol brasileiro já se cruzaram em outros momentos, mas as circunstâncias eram bem distintas.
“O Paulo Nobre chegou a usar um FIDC para restaurar a dívida do Palmeiras, mas ele usava capital próprio, foi quase um mecenas. O São Paulo mesmo já tinha tido a experiência de um FIDC, mas ele estava só cedendo recebíveis para antecipar recursos, não tinha um viés de reestruturação da dívida”, relembra Andrea Di Sarno, sócio e gestor na Galapagos Capital.
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Andrea faz referência aos empréstimos concedidos pelo então presidente do Palmeiras ao clube da Barra Funda entre 2014 e 2016, que depois foram absorvidos em um FIDC de R$ 100 milhões – com o próprio Paulo Nobre como único investidor. O “mecenato” ficou evidente pela ausência de prêmio na taxa de retorno, limitada ao CDI.
Em 2019, o São Paulo levantou R$ 40 milhões com um FIDC constituído pela Ouro Preto Investimentos. Além do valor muito menor do que o fundo atual, a grande diferença está na ausência de obrigações financeiras e de governança – os covenants. Guarde essa palavra, ela é importante para entender essa história e você verá mais detalhes adiante.
“O grande turning point aqui foi o São Paulo enxergar o FIDC como um instrumento para auxiliar o clube na resturação financeira. Não tem nada semelhante no futebol” argumenta Di Sarno.
Galapagos e Outfield foram buscar nos bolsos de seus clientes o dinheiro que alimenta o fundo feito sob medida para o momento e para os planos do São Paulo. Para convencer os donos da grana, os gestores fizeram ajustes técnicos no desenho do FIDC que revelam seu ineditismo – e também como os negócios do futebol são vistos com cautela pelos investidores.
O São Paulo ficou com as cotas subordinadas, que representam 40% do FIDC. É uma porcentagem excepcionalmente alta para este tipo de produto financeiro. Na prática, elas funcionam como um colchão de proteção para os investidores que detêm as cotas sêniores – os que de fato botaram dinheiro no fundo.
Em caso de problemas financeiros no FIDC, as cotas subordinadas absorvem as perdas primeiro, protegendo o capital dos investidores. O prejuízo, então, ficaria concentrado no clube.
Arrumando a casa
Os covenants – lembra da palavrinha? – são cláusulas restritivas negociadas entre as gestoras que criaram o FIDC e o São Paulo, único beneficiário deste fundo específico.
Por conta do FIDC, o São Paulo estará submetido, a partir de 2025, às seguintes regras:
- Limite de gastos com futebol: O São Paulo terá um limite de R$ 350 milhões por ano para gastos com o futebol profissional, incluindo salários de jogadores, comissão técnica, e outros custos relacionados. Nos últimos três anos, o São Paulo gastou mais do que R$ 350 milhões com futebol.
- Limite de gastos com administração: As despesas administrativas do clube também serão limitadas por um teto pré-estabelecido.
- Superávit financeiro: O São Paulo é obrigado a gerar superávit financeiro em todos os exercícios sociais até o prazo final das cotas do fundo. Isso significa que o clube não poderá gastar mais do que arrecada, garantindo a sustentabilidade financeira a longo prazo.
- Limite de endividamento: O FIDC também impõe um limite para o endividamento do clube, impedindo que ele assuma novas dívidas além de um determinado patamar.
Do ponto de vista de quem investe no FIDC – ou seja, de quem “empresta” ao São Paulo –, a operação fica menos arriscada pelo fato do São Paulo se dispor a cumprir regras fiscais e de governança que, se não forem respeitadas, dão aos credores o direito de resgatar os valores investidos. Isso fragilizaria muito as finanças do clube, além de afetar a credibilidade do São Paulo junto a bancos e possíveis credores.
Por via das dúvidas, é melhor cumprir todas as regras, né.
A grande virada
Com a terceira maior torcida do país, o São Paulo é uma das poucas equipes do Brasil com condições de apostar em um produto como o FIDC para catalisar uma mudança econômica que o coloque no mesmo patamar de times como o Palmeiras e Flamengo, hoje bem à frente dos demais clubes quando o assunto é capacidade financeira – e contas em dia.
Em outras palavras, um FIDC é para quem pode, não para quem quer.
Por estar apoiado na expectativa de receita futura, é um mecanismo que só está ao alcance de equipes que têm comprovada capacidade de geração de receitas, garantias sólidas e gestão profissionalizada. E, mesmo no caso do São Paulo, só foi possível porque em 2016 houve uma reforma no estatuto do clube que permitiu a melhoria da governança.
A situação política do time também ajudou. O FIDC foi aprovado pelo conselho do SPFC com 82% de apoio em um momento de especial força política do presidente Casares – a equipe tinha acabado de vencer o inédito título da Copa do Brasil, em 2023.
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O bom clima interno abriu o caminho para uma arrumação financeira que exigirá disciplina e austeridade. Se tudo der certo, estará concluída até 2030, ano do centenário do São Paulo.
A meta é chegar à efeméride faturando R$ 1 bilhão ao ano, 30% mais do que hoje, e com um perfil de dívida equilibrado. Hoje, o São Paulo deve cerca de R$ 700 milhões, que geram despesas financeiras anuais de R$ 90 milhões – três vezes o que o time do Morumbi investe na formação de atletas.
É uma situação complicada, mas que o time resolveu encarar com alguma engenhosidade e, assim, evitar a SAF, já adotada por mais 60 clubes brasileiros.
“Nós não podemos terceirizar o nosso problema, precisamos fazer a lição de casa porque o São Paulo tem condições de ser autossutentável”, defende Marcio Carlomagno, o executivo do time. “É a hora de nós conduzirmos. Precisamos ter dentro de casa as soluções para os nossos problemas.”